De qualquer forma, todos os cães estão uivando Um podcast da POSSIBLE FUTURES Exploração 1: Noções básicas Conversa 5: Palavras têm significado Mais informações sobre este podcast da POSSIBLE FUTURES em https://decolonise.possiblefutures.earth/anyway Luiza Oliveira: Olá, aqui é Luiza Oliveira, e você está aqui como uma mosca na parede, no meio do Coletivo POSSIBLE FUTURES. É intrigante, e às vezes perturbador, ver quantas pessoas ficam confusas quando alguns termos são usados ao falar sobre colonialidade e descolonização. A linguagem e as palavras têm muitos significados e são usadas de maneira diferente dependendo da cultura, época e contexto. A colonialidade perpetua um padrão hegemônico, o que significa que tenta reduzir a complexidade e assumir a perspectiva de um mundo único, como se essa visão limitada da realidade fosse a única verdade, promovendo a polarização e a objetificação de tudo que desafia a perspectiva colonial. A colonialidade está escondida à vista de todos e, através do uso de termos de uma determinada maneira, as pessoas são encorajadas a entender a história e a dinâmica através de certas lentes, sem questionar muito. Já que na cultura hegemônica existe apenas uma maneira correta de ver as coisas. Mas o que significa realmente hegemonia? Se você consultar um dicionário de inglês, verá que hegemonia significa domínio e influência de liderança de uma nação sobre outra, ou agressão ou expansionismo por parte de nações em um esforço para alcançar a dominação. Assim, em geral, ao analisar essas definições, as pessoas podem associar hegemonia à dinâmica militar. Mas, com o tempo, observamos que a dinâmica hegemônica é mais insidiosa do que isso. E essa dinâmica específica se reproduz além da atividade militar. Por exemplo, você pode encontrar a hegemonia sendo imposta por meio da propaganda, educação, agricultura, saúde e assim por diante, promovendo uma maneira de saber, ser e agir. Com isso em mente, muitas pessoas reproduzem perspectivas hegemônicas sem perceber que estão fazendo isso, já que essa tem sido a realidade valorizada ao seu redor. A realidade que elas aprendem a entender e a adorar. Então, quando questionadas e desafiadas sobre isso, as pessoas tendem a ficar reativas e defensivas, pois aprendem a associar sua própria identidade a estruturas e narrativas hegemônicas. Esse é apenas um exemplo de como as pessoas reproduzem a hegemonia sem perceber e, muitas vezes, quando questionadas sobre isso, muitas ficam confusas sobre como a hegemonia se perpetua em seu contexto. Mas vamos tentar simplificar. Quais são os outros exemplos de terminologias que você vê as pessoas ficando confusas e que beneficiam a colonialidade sem que elas percebam? Como a colonialidade se beneficia do uso indevido e da apropriação indevida de palavras? E quais são algumas das armadilhas coloniais em que as pessoas ficam presas ao lidar com terminologias? - Samantha Suppiah: É impossível falar sobre o termo “hegemonia” sem mencionar o filósofo, linguista, jornalista, escritor e político marxista italiano Antonio Gramsci. Criança doente, ele foi atormentado por vários distúrbios ao longo de sua vida. Sua experiência com a industrialização influenciou seu pensamento durante o período em que estudou na Universidade de Turim. Ele se filiou ao Partido Socialista Italiano em 1913, dando início à sua carreira política. Desenvolveu seus escritos em jornais socialistas como jornalista e tornou-se editor do jornal oficial do Partido Socialista após as prisões em massa de líderes do partido em 1917. Em 1922 e 1923, o governo de Mussolini reprimiu novamente os partidos da oposição, levando Gramsci a tomar medidas para garantir a união do movimento socialista na Itália. Em 1926, o próprio Gramsci foi preso e condenado a 25 anos de prisão. No 11º ano de sua prisão em condições precárias, sua saúde havia se deteriorado gravemente. Seus dentes caíram, seu sistema digestivo entrou em colapso, impedindo-o de comer alimentos sólidos... ele tinha convulsões quando vomitava sangue e sofria dores de cabeça tão violentas que batia a cabeça contra as paredes de sua cela. Ele acabou morrendo em 1937, aos 45 anos. Os famosos Cadernos da Prisão, de Gramsci, narram a história e o nacionalismo italianos, apresentando ideias importantes da teoria marxista, da teoria crítica e da teoria educacional, tais como, entre outras, a hegemonia cultural. Ele defendia o historicismo absoluto, uma abordagem para compreender os fenômenos sociais e culturais através do estudo do processo ou da história pelo qual se desenvolveram, ou seja, uma competência para reconhecer e compreender a evolução cultural. Em sua opinião, a burguesia desenvolve uma cultura hegemônica usando a ideologia em vez da violência, da força econômica ou da coerção. Essa é a realidade por trás do termo “hegemonia cultural”: experiência real enraizada na solidariedade e no sacrifício, não em privilégios e conforto financiados por riquezas roubadas. Os FUTUROS POSSÍVEIS não são marxistas, pois o socialismo não leva à descolonização. Mas Gramsci nos deu um termo que descreve precisamente as estruturas de poder que observamos e pelas quais somos governados, e nos ajudou a definir mais claramente — nas línguas de nossos colonizadores — nossas demandas decoloniais por direitos indígenas e soberania cultural diversificada como resultado da terra, alimentação, energia e soberania nacional, onde “nação” se refere a grupos étnicos autodeterminados. Quando as terminologias são utilizadas de forma inadequada, desrespeitando suas origens, isso é chamado de cooptação. A cooptação consiste em minimizar e negligenciar o conflito e a luta das experiências vividas por aqueles que lutaram e morreram para enunciar as ideias por trás das palavras. Ela expõe a ignorância e a impunidade do orador ou autor, e isso é ainda mais perigoso quando eles não são responsabilizados por filósofos conscientes, atentos e eruditos, papéis assumidos por pessoas reais com experiências reais, com interesses reais em jogo. Pessoas com honra, integridade e convicção. Obviamente, essa é uma classe extinta entre a Geração X e a Geração Y, em busca incessante do lucro capitalista extrativista. Na Geração Z, no entanto, a história é diferente. - Anna Denardin: Muitas vezes assumimos que a confusão em torno da terminologia é um subproduto da complexidade. Mas, em contextos coloniais, a confusão não é um bug, é uma característica. Nesse processo, a terminologia pode se tornar uma armadilha, afastando-se ainda mais de suas raízes históricas e políticas e aproximando-se do que Lélia Gonzalez, autora, ativista, professora, filósofa e antropóloga brasileira, chamou de “branqueamento do discurso”. Ela expôs como as instituições dominantes brasileiras, incluindo a academia, a mídia e até mesmo os movimentos progressistas, produzem um espaço sociolinguístico onde a cultura e a resistência afro-brasileiras são sistematicamente desvalorizadas ou apropriadas, enquanto a aparência de harmonia é preservada. Abdias do Nascimento levou isso ainda mais longe. Tanto em seu ativismo quanto em seu trabalho intelectual, ele insistiu que a cultura negra brasileira deveria ser reconhecida não como “diversidade”, mas como projetos civilizacionais violentamente suprimidos pela colonização. Sua crítica ao epistemicídio, o extermínio de sistemas de conhecimento, nos mostra que a colonialidade não se resume apenas à terra e ao trabalho roubados, mas também à língua, aos conhecimentos e às visões de mundo roubados. O que Samantha apontou em sua reflexão sobre cooptação é muito importante, pois os sistemas coloniais tendem a assumir que falar sobre algo é o mesmo que fazer algo. Eles absorvem a crítica e a metabolizam no sistema. Pense na rapidez com que as instituições agem quando uma palavra da moda se torna popular. Elas organizam webinars sobre descolonização com o mesmo orçamento que financia projetos extrativistas. Como nos lembra Abdias do Nascimento, uma palavra deve caminhar. Ela deve estar enraizada na responsabilidade e na ação para ter significado. — Luiza Oliveira: Exatamente. A colonialidade impõe hegemonia cultural e epistemicídio quando usa indevidamente e se apropria de palavras. Outra forma de disseminar e cultivar a hegemonia cultural é quando as pessoas se perdem na semântica. Isso me faz pensar em quando Fanon critica os intelectuais que se posicionam apenas em um nível abstrato, sendo incapazes de estabelecer contato duradouro com seus pares em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas. E isso é algo que vocês dois mencionam e que acho importante destacar aqui. A descolonização se baseia na experiência, no contexto, na prática e em como nos relacionamos com os outros, com nossos diversos ambientes e com nós mesmos. Como Anna disse, em um contexto colonial, a confusão é uma característica. E desconectar o contexto do significado é como a colonialidade cria suas narrativas e justificativas. Além do termo hegemonia, um termo que tenho a impressão de que muitas pessoas usam sem compreender totalmente as várias formas como se manifesta nos seus contextos e o quão prejudicial é, existem muitos outros termos que cultivam a hegemonia cultural. Desenvolvimento, empoderamento, liberdade — são alguns dos termos que, sem olhar ou sem identificar as dinâmicas de poder envolvidas na situação em que são usados, são vendidos como um sinal de boas intenções em benefício de um bem maior e, na maioria das vezes, continuam a perpetuar a colonialidade. Porque o que eles geralmente significam é o desenvolvimento de alguns à custa de muitos, o empoderamento de poucos e a liberdade como sinônimo de falta de responsabilidade. — Samantha Suppiah: Termos como desenvolvimento, empoderamento, liberdade, democracia, meritocracia... Todas essas são palavras usadas, introduzidas e popularizadas pelas classes de elite para justificar os sistemas civilizacionais ou imperiais que mantêm seu status de elite. São palavras que beneficiam a elite minoritária, subjugando todas as outras perspectivas, todas as outras culturas, todas as outras línguas, todas as outras realidades. Em nossa ordem global capitalista, todas essas palavras têm algo a ver com lucro monetário, em certa medida. Desenvolvimento, por exemplo, denota avanço, progresso, melhoria — mas geralmente se refere à urbanização concreta, aos sistemas de infraestrutura ocidentais e ao alinhamento com uma ideologia progressista ocidental. Há financiamento para todas essas coisas, por meio de bancos de desenvolvimento ou ONGs internacionais. Isso vem acompanhado de um incentivo financeiro. Se você quiser buscar qualquer outra definição de “desenvolvimento”, será uma batalha difícil, cheia de armadilhas e mercenários à espreita. “Democracia” é outra palavra com um sabor particularmente intenso de etnocídio. Normalmente denota justiça, igualdade e representação. Mas, na verdade, significa fazer campanha eleitoral para estabelecer padrões ocidentais, com um discurso altamente selecionado, permitido ou censurado por meio de um controle rígido da mídia, da instrumentalização do judiciário, do obscurecimento de táticas políticas como o gerrymandering e da supressão inerentemente injusta das necessidades e demandas especializadas ou minoritárias. Mais uma vez, há financiamento para certos modos permitidos ou certificáveis da chamada “democracia” e não para outros. “Meritocracia”, regada com molho de conformidade. Normalmente associada ao desempenho, habilidade, talento e trabalho árduo – e sendo recompensada por tais coisas dentro do sistema, geralmente com maiores responsabilidades ou maior influência. Na realidade, isso é pouco mais do que um mecanismo de incentivo para um escravo preso dentro de um sistema projetado para extrair trabalho de corpos e mentes a serviço do lucro corporativo. A modernidade celebra a intelectualização em detrimento da incorporação. A aparência em detrimento das ações. O que significam as palavras quando o significado não é percebido? A semântica acadêmica no mundo real é um grande sinal de alerta para mim. É um indicador extremamente preciso de incompetência e inexperiência nas realidades concretas e na prática de intervenções nessas realidades. É o que acontece quando as pessoas estão tão distantes da realidade, sentadas em torres de marfim criando teorias inconsequentes baseadas em narrativas hegemônicas que acabam sendo adotadas pelos poderes constituídos, cujos interesses lucrativos por acaso convergem. O progressismo ocidental afirma defender valores como “diversidade, equidade e inclusão”, mas precisa policiar a linguagem e a semântica porque, em sua visão, uma palavra só pode ter um significado, independentemente das realidades contextuais. No entanto, em todo o Sul Global, as conversas realizadas no mundo real são repletas de significados decorrentes da experiência imediata, usando palavras, frases e metáforas que nunca serão compreendidas ou respeitadas por aqueles que erroneamente se autodenominam “intelectuais”. - Anna Denardin: Acho que há algo muito importante sendo revelado aqui sobre como os sistemas coloniais manipulam e usam a distração como arma para perpetuar a confusão. Outra palavra que vejo estrategicamente recheada de algodão e vendida de volta como revolucionária é empoderamento. A palavra ficou tão inflada com o otimismo das palestras TED que está praticamente flutuando. As instituições adoram essa palavra. Pode parecer legal, mas quem está empoderando? E dentro de qual sistema? A hegemonia colonial ainda é o caminho bom, verdadeiro e certo a seguir e, como ainda é ela que define os termos do empoderamento, ainda mantém o poder de decidir quem incluir e quem excluir, essa abordagem à mudança não perturba a hegemonia. Na verdade, essa abordagem reforça a hegemonia. Na maioria das vezes, a palavra é usada por instituições para fazer as pessoas sentirem que têm autonomia, quando, na verdade, elas ainda estão operando dentro dos limites de uma estrutura colonial ou capitalista. Agora vamos falar sobre “voz”. Outro queridinho do complexo industrial das ONGs. “Queremos elevar vozes. Centralizar vozes. Dar voz.” O que isso significa? Em primeiro lugar, as pessoas têm voz. O problema não é a ausência de voz, é a presença de uma escuta muito seletiva. Ou “resiliência”. Esse é outro grande tema. Especialmente nos círculos de desenvolvimento e ajuda humanitária, você ouvirá falar em tornar as comunidades “mais resilientes”. Mas o que raramente é reconhecido é que a resiliência exigida é para suportar os mesmos sistemas que criaram o dano em primeiro lugar. E essa é a armadilha. A colonialidade usa a distração e a ambiguidade como armas para evitar a responsabilização. Ela distorce, confunde e renomeia a linguagem para que acabemos debatendo semântica enquanto os mesmos sistemas extrativistas continuam funcionando, ininterruptamente. Então, talvez nossa tarefa não seja apenas definir nossos termos, mas rastrear seu comportamento. Observar como eles se movem. Quem os usa e em quais contextos? Eles abrem espaço ou o fecham? Eles redistribuem o poder ou apenas suavizam suas arestas? — Luiza Oliveira: Acho que há algo muito importante no que vocês dois compartilharam sobre a dinâmica da fala e do poder que vai muito além da terminologia usada. E isso remete ao que mencionamos antes sobre sentir e compreender o que está sendo dito em conexão com a experiência, a incorporação, o contexto e a história, à medida que você entende quem vai se beneficiar com o que está sendo dito e quem vai ser prejudicado por isso. O que está sendo perpetuado? O que está sendo desmantelado? Quem tem permissão para falar dessa maneira? Quem está realmente sendo ouvido? E por quê? Muitas vezes, a colonialidade se aproveita do trauma que infligiu para oferecer “soluções” aos mais prejudicados que não só não vão oferecer reparação ou reconhecer seus danos, mas também vão tentar cultivar ainda mais a dependência. É importante ficar atento e desenvolver um sentimento crítico juntamente com o pensamento crítico enquanto se ouve as pessoas falarem, porque, mais vezes do que eu gostaria de admitir, me vi sentindo a dissonância no discurso primeiro, mas só depois de ser capaz de reconhecer, nomear e compreender a dinâmica de poder abusiva por trás do que estava sendo dito. Sei que quanto mais aprendemos e praticamos para identificar e compreender essas dinâmicas, mais rápido conseguimos nos manifestar no momento e desafiá-las de forma mais estratégica. — Samantha Suppiah: As palavras têm um significado ligado à experiência vivida. Pessoas sem experiência de vida difícil, conflitos, desigualdade ou injustiça não têm ideia do que as palavras realmente significam. Quando muitas pessoas no Sul Global crescem com essas realidades, confiem que elas têm suas próprias palavras. Essas realidades só existem porque a elite global recebe privilégios sistêmicos. Esta é a nossa ordem mundial colonial, na qual a cultura globalizada da supremacia branca opera por meio das palavras. É por isso que importa quem é que diz o quê, e por que as palavras que as pessoas usam dizem muito sobre como se identificam e as estruturas de poder com as quais se alinham e das quais obtêm favores. Este é um problema enorme dentro da chamada esquerda política ampla, que é apenas mais uma faceta da nossa ordem mundial colonial – a faceta que procura tornar a colonização mais confortável para os colonizados, demonstrando solidariedade superficial, roubando palavras, despojando-as de significado, controlando o tom com que as palavras são usadas e tirando proveito através do capital social, político e financeiro. O epistemicídio da cooptação colonial, o branqueamento do discurso, é extremamente perigoso quando não é contestado e se permite que prolifere. As perspectivas, ideias e conhecimentos do Sul Global são roubados, não são devidamente creditados e são utilizados indevidamente, sem permissão ou consentimento, pelos privilegiados e pela elite dentro da nossa ordem mundial colonial. Para mim, é uma loucura termos de explicar isto. As palavras não devem ser tomadas de ânimo leve. Exercite o respeito e o consentimento. — Equipe do POSSIBLE FUTURES: Esta é Luiza Oliveira. Esta é Samantha Suppiah. Esta é Anna Denardin. De qualquer forma, todos os cães estão uivando.