De qualquer forma, todos os cães estão uivando. Um podcast da POSSIBLE FUTURES. Exploração 1: Noções básicas. Conversa 2: “Sul Global”. Mais informações sobre este podcast da POSSIBLE FUTURES em: https://decolonise.possiblefutures.earth/anyway Samantha Suppiah: Olá, aqui é Samantha Suppiah e você está entre nós, no Coletivo POSSIBLE FUTURES. Ecocídio. Genocídio. Etnocídio. Epistemicídio. Esses são os quatro danos coloniais que consideramos no POSSIBLE FUTURES, para nos ajudar a reconhecer e avaliar onde a colonialidade está situada em qualquer contexto e como ela opera. Por exemplo, estamos falando inglês hoje por causa da supremacia colonial britânica nos séculos passados e por causa da supremacia imperial dos Estados Unidos hoje. Estamos falando em inglês hoje em um contexto global em que a ordem mundial colonial, criada e mantida por nossas classes dominantes, em sua maioria europeias, está implodindo rapidamente. Caso você não tenha percebido, a civilização ocidental moderna está se fragmentando em pedaços irreconhecíveis diante dos nossos olhos. É nesse contexto que estamos falando sobre a ascensão do Sul Global, que não é mais comumente referido como o “mundo em desenvolvimento”. Os liberais ocidentais preferem outros termos, como “mundo majoritário” ou “resto do mundo”. Os profissionais de sustentabilidade e regeneração estão desesperados para envolver a chamada “sabedoria indígena”, à medida que começam a perceber as vastas limitações da sustentabilidade colonial. A fossa da ignorância colonial, da apropriação indevida e da cooptação é enorme. Ela está repleta de terminologias insultantes e uso ignorante de palavras — que podem parecer mais apropriadas. Como sempre, o contexto é fundamental. Não existe um termo definitivamente inadequado, insultuoso ou prejudicial. Tudo depende de como as palavras são usadas, quem as usa e com que finalidade. Como equipe, tivemos que aprender da maneira mais difícil como a colonialidade coopta a libertação por meio de palavras, falsificando significados e futuros para obter e manter aprovação, validação, recompensa e, por extensão, estruturas de poder convenientes. É duplipensar ou duplilinguagem? Estamos mentindo uns para os outros ou para nós mesmos? Onde está a responsabilidade? Como corrigimos os erros de maneira adequada? Em primeiro lugar, o uso respeitoso das terminologias começa com a consciência, a autointerrogação e a autorregulação. Como alguém pode se conscientizar dos danos coloniais nas terminologias por meio da conscientização? Como alguém pode desenvolver hábitos de autoquestionamento? E como alguém pode assumir responsabilidade pública por meio da autorregulação? Tudo se resume sempre à forma como a colonialidade lucra com o uso e abuso dos termos. — Anna Denardin: Você perguntou se isso é duplipensar ou duplilinguagem. Acho que é ambos. Duplipensar é uma forma de manipulação mental em que os indivíduos podem ter crenças contraditórias simultaneamente. É como saber que as conferências sobre sustentabilidade são patrocinadas por empresas petrolíferas, mas mesmo assim aplaudir as promessas de emissões líquidas zero. É a arte de esquecer seletivamente e, depois, esquecer até mesmo o processo de esquecimento. A linguagem ambígua é a linguagem que sustenta isso. Eufemismos, jargões e termos vagos para obscurecer a verdade ou tornar coisas desagradáveis mais palatáveis. É o greenwashing, o diversity-washing, as estratégias resilientes e os compromissos com as partes interessadas que servem como desodorante para a decadência, poesia corporativa para a exploração contínua. Dominar a nova palavra da moda torna-se um desempenho moral, como se usar o termo certo fosse o mesmo que fazer o trabalho. Em 1984, Orwell descreve departamentos inteiros dedicados à “novilíngua”, uma linguagem controlada projetada para estreitar o leque de pensamentos, eliminando palavras antigas, proibindo outras e inventando novas. Essa constante agitação tinha a ver com controle. Se você pode desestabilizar o significado, pode paralisar a ação. A confusão e a distração tornam-se uma estratégia de governança. Vejo agora o paralelo com essa hipersensibilidade em torno dos termos. Isso gera uma cultura de direito, em que as pessoas esperam que os outros usem os “termos corretos”, como se a linguagem fosse um serviço pessoal que lhes fosse devido, e reivindicam uma superioridade moral por meio da conformidade linguística, em vez da ação. É narcisismo. É assim que a colonialidade continua vencendo, ela muda o campo de batalha para o terreno da semântica, onde as pessoas podem competir por pontos de pureza sem nunca mudar as condições materiais. E isso não é imposto apenas de cima por meio da propaganda ou da educação. É autoimposto por meio da dissonância cognitiva, da negação e da cegueira voluntária para priorizar o conforto próprio. No mundo de Orwell, as pessoas aprenderam a falar e pensar com duplicidade, em parte porque eram vigiadas pelo Big Brother e havia a ameaça de punição, então sim, existiam mecanismos de fiscalização. Mas, eventualmente, as pessoas passaram a se policiar, não apenas por medo, mas por pressão dos pares e pelo desejo de se encaixar ou ganhar status dentro do partido. Então, estamos mentindo uns para os outros ou para nós mesmos? Acho que ambos. Mentimos uns para os outros para alimentar ilusões de falso pertencimento e mentimos para nós mesmos para alimentar identidades falsas. Uma mentira compra uma comunidade falsa, a outra compra um conforto falso, e ambas mantêm a máquina colonial funcionando, eficiente, bem lubrificada, esmagando almas. — Luiza Oliveira: Pensamento duplo, discurso duplo, criados a partir do duplo padrão da lógica colonial dissonante que, devido aos seus mecanismos de controle violentos, cultiva confusão, paralisia e conformidade por meio de falso pertencimento, falsa identidade, falsa comunidade, como vocês dois acabaram de mencionar. O pensamento hegemônico apaga o contexto, a complexidade e as nuances, sob o lema da unificação, minando o que realmente nos torna fortes, nossas várias maneiras de pensar, ser e agir. Essa lógica colonial também se aplica à forma como nos comunicamos e como aprendemos a nos comunicar, como Samantha mencionou no início. A colonialidade se beneficia da padronização da linguagem, informando também quem tem permissão para falar e como. Quem tem valor quando fala e quem será automaticamente apagado quando tentar falar. A colonialidade também cultiva a paralisia, para incentivar as pessoas a continuarem evitando ver o quanto seus atos são políticos, incluindo seu silêncio, lucrando com sua “indiferença”, para manter aqueles no poder, com seus sistemas em vigor. E é aqui que a autointerrogação é uma prática crucial que precisa ser desenvolvida se você quiser quebrar os ciclos coloniais. — Samantha Suppiah: Sim, é exatamente assim que a colonialidade continua vencendo e nos mantendo mentalmente escravizados, educadamente obedientes. Autopoliciamento e a arte da auto-manipulação. Uma performance superficial elaborada que tende à nanocamada do falso eu, para convencer a si mesmo de que as coisas são aceitáveis, confortáveis e que realmente não há necessidade de agitar as coisas. Se todos os indivíduos dessa sociedade dizem a si mesmos que, apesar de suas próprias experiências de maus-tratos, injustiça e abuso descarado, eles também devem participar de todo o coração da farsa, na qual suas experiências são normais. Maus-tratos são normais. A injustiça é normal. O abuso é normal. Assim, escravizando uns aos outros por meio de um entendimento mútuo tácito, implorando por favores de nossos senhores, porque a obediência é normal. E se sairmos dessa obediência autopoliciada e autorregulada, somos envergonhados e culpados pelo abuso infligido a nós. Como se fôssemos abominações por buscar e construir sistemas de justiça, de antiopressão. É nesse reino que somos facilmente sabotados e manipulados. Já estamos nos colocando em desvantagem, buscando agradar as pessoas para obter a validação daqueles que defendem a colonialidade, a supremacia branca. Não é de se admirar que estejamos preparados para aceitar o controle quando somos pressionados a fazê-lo. Fomos treinados para isso durante toda a nossa vida. E assim acabamos com ocidentais não brancos do Norte Global se exibindo no LinkedIn declarando: “Eu não sou do Sul Global”. Em suas postagens, eles romantizam suas próprias experiências com suas histórias, suas culturas e suas terras, ignorando séculos de luta e revolução decolonial, varrendo para debaixo do tapete o imenso preço pago por seus ancestrais em seu movimento em direção à soberania, para serem livres mais uma vez, livres do colonialismo e do imperialismo, para serem livres do trabalho, da mão de obra, do capitalismo. E escrevem que o termo “Sul Global” achata suas identidades. Como se fosse um pronome para anunciar que os outros se referem a você. Essas postagens são celebradas por milhares de pessoas brancas nessa declaração, com centenas de pessoas colonizadas e racializadas entrando na conversa para dar e receber essa mesma validação da colonialidade. De uma só vez, os autores dessas publicações insultam uma ampla diversidade de atores dentro do movimento descolonial global, incluindo os próprios Estados-nação, que usam o termo “Sul Global” para se referir à colaboração, organização e solidariedade anticolonial e anti-imperialista – um esforço global unificado contra a colonização e o imperialismo em nível internacional. Porque é aí que reside o poder: narrativas concertadas e ação organizada. A hegemonia liberal prefere denunciá-la como uma mera matriz de identidade para promover a individualização e a romantização ocidentais. Uma armadilha colonial na qual muitos caem porque alimenta o falso eu egoísta, trazendo suprimento narcisista. Porque as palavras são facilmente transformadas em armas pelo que Anna chamou de “conformidade linguística”. — Anna Denardin: Luiza mencionou essa tática de propaganda colonialista em que não é preciso falar com aqueles que são a favor ou contra algo, basta manter as pessoas neutras para que continuem neutras, beneficiando-se da chamada “indiferença” ou “imparcialidade” delas. Também estamos abordando outra tática aqui: manter aqueles que já são a favor ou contra algo confusos e distraídos, porque isso leva à paralisia e à ineficiência. O movimento decolonial do Norte Global — especialmente a retórica privilegiada do LinkedIn e os campos de “descolonização da mente” — é frequentemente minado por esse tipo de confusão. Samantha destacou a tendência “Eu não sou do Sul Global” como um exemplo claro disso. Nesse caso, as pessoas criticam o termo como se fosse um simples rótulo geográfico. O Sul Global não descreve apenas a localização; não é apenas uma forma de localizar os países colonizados em relação ao Norte. No entanto, as pessoas aceitam facilmente esse absurdo performático. Como podemos nos tornar bons em combater isso em prol da verdadeira descolonização? Samantha enfatizou que o uso respeitoso da terminologia começa com a consciência, a autoquestionamento e a autorregulação. Desenvolver hábitos de consciência significa compreender como os sistemas de colonização e colonialidade operam, pesquisando e informando-se sobre os mecanismos, as dinâmicas e as estratégias da colonialidade para se infiltrar até mesmo em suas alternativas. Isso permite abordar as ideias de forma crítica e separar com mais precisão e clareza o que é substantivo do que é performativo ou manipulador. Você se torna melhor em evitar as armadilhas. A autorregulação envolve um processo contínuo de avaliação da colonialidade em qualquer contexto. Luiza fez algumas perguntas que podem ser realmente úteis para isso. Normalmente, acho que definir perguntas para si mesmo, às quais você pode voltar constantemente para verificar suposições e preconceitos, pode ser um processo realmente útil. A autorregulação implica criar, implementar e iterar estratégias para regular e abordar a colonialidade. Iterar estratégias significa testá-las e ajustá-las continuamente, considerando que, ao testá-las, erros ocorrerão. Portanto, também é necessário praticar o reconhecimento dos erros e danos causados e repará-los, abordando-os de forma respeitosa e adequada, praticando a responsabilidade e formas mais saudáveis de relacionamento. — Luiza Oliveira: Exatamente, Anna, formas saudáveis de relacionamento. Para mim, esse é um elemento fundamental que requer prática e cuidado, e pode ajudar a romper com o isolamento e a confusão criados pela colonialidade, de maneiras apropriadas. Promover formas saudáveis de relacionamento é o que torna a terminologia vazia e cooptada muito clara, expondo como os discursos coloniais não se baseiam na experiência nem no contexto, mas em cenários falsos. Como conversávamos antes sobre o falso senso de identidade, falso senso de pertencimento e falso senso de comunidade. Existem muitas maneiras de se relacionar com foco no cuidado e na saúde. E, para mim, existem alguns aspectos que são centrais nessas relações, que as tornam saudáveis. Como, por exemplo, responsabilizar uns aos outros, assumir a responsabilidade pelo aprendizado contínuo individual e coletivo, praticar e aprimorar habilidades, como você mencionou. Saber que cada pessoa traz experiências diferentes e faz parte de vários contextos, e que essas diferenças são oportunidades para aprender e desaprender, e não distintivos de direito. Em contextos saudáveis, as interações performáticas mostram sua verdadeira essência, caracterizada por transações egoístas frágeis, um buraco negro sedento por validação narcisista, esperando que uma cadeia interminável de suprimentos se mantenha em uma posição de poder sobre tudo o mais e, é claro, para sempre. Quero dizer, qualquer semelhança com os modelos econômicos modernos não é coincidência. E, como ambos mencionaram, praticar a consciência, a autointerrogação e a autorregulação comprometidas com a descolonização não é uma lista de coisas a fazer ou uma receita sobre como você deve se comportar ou se relacionar. Para mim, comprometer-se com a descolonização é um processo ao longo da vida para continuar a aprender e desaprender, arriscando cometer erros e responsabilizando-se por assumir responsabilidades e reparar os erros, enquanto se navega pelas armadilhas coloniais, desmantelando padrões e ciclos coloniais, ao mesmo tempo que se desenvolvem relações saudáveis através da prática. — Samantha Suppiah: Recapitulação: a colonialidade vence quando se promove a confusão, pois isso permite que a hegemonia ocidental e o soft power se saturarem, dominarem e exercerem pressão. A colonialidade também vence quando as chamadas perspectivas decoloniais utilizam metodologias coloniais num esforço para educar os colonizadores. Notícia de última hora: a chamada educação é extremamente limitada, enquanto o efeito de envolvê-lo em comportamentos e modos de ser coloniais é garantido. Vale a pena? Termos como “mundo em desenvolvimento”, “Sul Global” e “sabedoria indígena” precisam ser percebidos e avaliados no contexto de estruturas de poder mais amplas que realmente importam, seja nos níveis cultural, jurídico, material ou geopolítico. Não ideologias narcisistas com as quais você pode escolher se identificar ou não, como um acessório de moda, para gerar confusão e permitir a infiltração da hegemonia ocidental. Os líderes indígenas em todo o mundo precisam ser mais claros sobre o ponto que vêm defendendo há séculos. Você quer a “sabedoria indígena” para ajudar a regenerar o planeta que você destruiu? Então vá às mesas decoloniais e faça acordos. Os líderes indígenas têm exigido garantias de segurança, desculpas, direitos, a devolução de riquezas e terras roubadas, indenização por atrocidades coloniais e amplo respeito cultural para que os povos indígenas deixem de ser usados e abusados. Mulheres ricas de pele morena nos países do Sul Global, com suas marcas de cosméticos neutros e éticos, explorando a classe média e as pessoas economicamente desfavorecidas, enquanto lucram com o conhecimento indígena para financiar seus apartamentos em condomínios nas megacidades, vocês estão ouvindo? Homens de pele morena apoiados por bancos que mercantilizam um patrimônio arquitetônico no qual vocês nunca cresceram, mas com o qual afirmam se identificar simplesmente por causa das fronteiras nacionais traçadas por seus colonizadores, vocês ficaram surdos enchendo os ouvidos com tanta validação branca? Ou vocês dois estão ocupados demais falando sobre como se sentem insultados por terem suas identidades niveladas ao serem chamados de Sul Global? — Anna Denardin: Samantha, você acabou de arrancar a máscara e dar um tapa na cara. Como você disse no início, tudo se resume à forma como a colonialidade lucra com o uso e abuso dos termos. Quando pessoas nascidas no Sul Global, mas que passam a maior parte de suas vidas no Norte Global, entram em instituições de elite e aproveitam sua herança como moeda profissional, alegando ser decoloniais — sem ter nem mesmo o entendimento básico de que “Sul Global” não é um rótulo geográfico —, isso é exatamente o que Fanon nos alertou. Os oprimidos podem se tornar opressores no momento em que adotam a lógica colonial para se aproximar da branquitude, da legitimidade ocidental ou da aprovação da elite. Fazer parte de uma rede de reciprocidade é o que define a cultura e a tradição. Quando você se afasta dessa reciprocidade e participa apenas do benefício final, isso não é cultura. Isso é terceirização colonial. É um direito disfarçado de identidade. Essa é a lógica distorcida que a colonialidade nos impõe: convencer indivíduos confusos de que estão participando de sua cultura, quando na verdade estão alimentando o etnocídio e o epistemicídio. É mais fácil mentir para si mesmo, fingir que sua participação na cultura está intacta, mesmo quando as práticas, o contexto e as relações que antes a mantinham unida foram rompidos. Então, onde está a responsabilidade? Em reconhecer nossa cumplicidade e privilégios coloniais. Em abordar a confusão sobre o patrimônio. Em apoiar a soberania indígena, em vez de invadir os modos de vida indígenas e oferecê-los como um serviço para beneficiar as potências coloniais. — Equipe do POSSIBLE FUTURES: Esta é Luiza Oliveira. Esta é Samantha Suppiah. Esta é Anna Denardin. De qualquer forma, todos os cães estão uivando.